Acontece em Lisboa
Igreja de São Domingos

“Saudemo-nos na Paz de Cristo”.

O frade remexeu-se na cadeira ao ouvir “a Paz de Cristo”, tinha sido esse mesmo o motivo pelo qual ingressara na ordem dominicana há seculos atrás, em 1502.

O fascínio pela importância desta igreja onde até o Condestável Nuno Alvares rezara dera-lhe o alento necessário para a mudança de vida que ansiara.

Estudara na Ordem e vivera no seu enorme convento do centro de Lisboa que já não encontrou e até mesmo a igreja apresentava uma fachada que não reconheceu, lera algures que era uma oferta do rei D.José e que pertencera a Patriarcal, entretanto destruída pelo grande terramoto de 1755. Gostara da vida de pregação e da disputa intelectual entre os seus iguais.

Ainda hoje adorava questionar, filosofar e pensar, aprendera tudo isto no seio dos dominicanos seus irmãos.

Lá dentro reinava o silêncio cortado aqui e ali por passos incessantes de piedosos e de turistas subjugados a imponência do espaço com a dominante cor ocre encastrada nas pedras enegrecidas pelo fogo que as lambeu com uma ira que parecia divina.

Levantou a cabeça, raios de luz banhavam a assistência com um véu que sobrevoou séculos, cerrou os olhos, não não queria ver, era insuportável, mas ele sabia-o seria impossível fechar os olhos da lembrança.

Os gritos, aqueles gritos de terror ecoaram na sua cabeça, olhou a volta, percebeu que só ele conseguia ouvir, o bulício dos tempos modernos amortecia-os quase ao ponto do inaudível.

A memória abriu a gaveta do tempo e reclamou a sua história, tudo acontecera na capela dedicada a Jesus, que já não encontrava. Tinha um crucifixo a ocupar o espaço do altar e no meio um espelho. Todos viram Maria ajoelhada em frente a Jesus e por cima da cruz, luzes. Era o milagre, em tempos adversos, de peste, guerra, fome . A seca grassava e fomentava medos populares e rancores seculares contra um grupo economicamente bem instalado e com vasta cultura e conhecimentos a ponto de granjear o apoio real.

Ao clima de insegurança não seria alheio o desconforto provocado pelas reformas administrativas nas quais o poder central decretara normas sobre vivências locais, sendo os impostos por norma cobrado pelos judeus que o rei Bem-Aventurado tanto se esforçou por integrar na sociedade mas os favores proporcionados a João Rodrigues Mascaranhas, escudeiro do rei, incutiam na população contidos ódios viscerais, que lhe iriam ditar o trágico futuro

O grito rompeu sobre os murmúrios de êxtase da turba e rasgou o fluxo do seu pensamento, alguém teria dito que eram reflexos de um vela ou do sol, ou fora mesmo a pergunta desafiante sobre a natureza do milagre, porque não o da água que tanta falta fazia. Teria sido uma voz de cristão ou de um judeu? Essa raça tão mal amada que por ter morto Jesus que venceu Satanás, eram na Vox Populi o próprio Satanás.

Já não se lembrava.

O turbilhão que se seguiu deixou-o sem folego, só viu mulheres a espancar, homens a perseguir na rua e depois dentro das casas dos cristãos-novos. Muitos eram atirados das janelas para camas de espadas. E eram tantos os mortos que montaram três locais de piras crematórias, no Largo de São Domingos, no Rossio e no Terreiro do Paço.

O cheiro do sangue e do medo misturava-se com o rancor, os gritos e o fogo das fogueiras. No meio disto o que mais o marcou foi o incitamento dos frades da sua congregação, Frei João Mocho e Frei Bernardo, que empunhando um crucifixo processional instigavam a matança prometendo dias de absolvição no outro mundo.

E os desgraçados nem com a protecção regia podiam contar nesta hora de aflição, neste massacre que durou 3 dias, pois D.Manuel estava ausente em Abrantes para fugir da peste que grassava na capital.

Pio, justo, benevolente e caridoso, o monarca chorou quando recebeu a notícia. Puniu com mão de ferro os seus irmãos e num acesso de ira quis demolir os templos dominicanos, chegando ao ponto de alterar o título da cidade de “Nobre e sempre leal cidade de Lisboa” para “Cidade Rebelde”. Anos mais tarde e por influência da rainha abranda a sua mão justiceira

Horror, só conseguia sentir o horror que na altura não suportou e de tão asfixiante angústia fugiu para os arrabaldes, que com as suas hortas eram propícios a reflexão sobre o porquê de tanta amargura e desesperança. Queria entender e paradoxalmente esquecer.

Voltou anos mais tarde, mas os homens tinham chamado um tribunal que de balbuciar lhe fazia escorrer lágrimas. O tribunal do Santo Oficio instaurado 30 anos depois desse horrendo genocídio. O alvo principal eram os cristãos-novos que por terem sido, na maioria forçados ao baptismo, podiam agora ser julgados por uma religião que no íntimo não professavam.

Virou-se para a entrada mas o clarão luminoso não deixou ver a parede do pórtico. Melhor assim. Para quê tentar ver as marcas dos infames troféus das penitências inquisitoriais, esses hábitos dos sentenciados que davam pelo nome de sambenitos onde era estampado o nome da vítima e o seu retrato sobre tições acesos, tendo por baixo o nome do pai, da pátria e em legenda a qualidade do crime pelo qual eram justiçados, seguia-se o ano, mês e dia da execução.

Chegava a ser um estendal de centenas.

Ponderara na altura e voltou as costas a esta terra que o viu nascer, até há dias quando a saudade lhe corroeu o espirito. No outro ponto do mundo onde se refugiou não assistiu ao terramoto de 1755 que destruiu imagens, pinturas e a valiosa biblioteca, às festas reais que aqui ocorreram, o casamento de D.Pedro e D.Estefânia que cedo acabara com a trágica morte da rainha, o casamento de D.Luis com D.Maria de Saboia que tão infeliz fora neste reino além de ver o seu filho assassinado, o baptizado de D.Carlos, que seria assassinado e Casamento de D.Carlos com D.Amélia que tal como a sogra teve a suprema infelicidade de assistir na primeira pessoa ao regicídio de seu marido e morte do seu primogénito. E neste enumerar de episódios o fogo de 1959 que a destruiu por completo, não poderia ser olvidado

No silêncio e recolhimento não proferiu quaisquer juízos de valor.

Pegou no seu bastão, que com a evolução do natural falar passou a chamar-se bengala e tomou a firme resolução de nunca mais voltar a este lugar, já tinha sido fustigado o suficiente, por todo o lado eram visíveis as cicatrizes rasgadas nas pedras negras que evocavam os sacríficos de todos os que aqui supliciaram

A vida deu-nos a patine do tempo não para esquecermos ou julgarmos mas para que na lembrança evoluamos para seres mais completos e mais felizes.

Estava velho demais, as pernas já não lhe respondiam com a mesma agilidade de outrora, os anos também passavam por ele embora a velocidade mais lenta. Sabia, no intimo, que o mundo ainda iria viver muita turbulência, sentia os sinais de mudança em andamento e isso dava-lhe uma profunda esperança e uma inegável Paz, a Paz de Cristo.

E no largo fronteiro a igreja onde durante anos a população prestou culto aos mártires e antepassados, lá estava o memorial para a posteridade e nas paredes escrito “Lisboa Cidade da Tolerância”.

A encimar o frontão do Teatro D. Maria estava Gil Vicente a sorrir ele que fora alvo do tribunal da Inquisição que aí tinha a sua sede no antigo edifício Estaus, precisamente por rir muito.

Sempre se tinha questionado qual teria sido a influência das personagens judaicas dos seus autos na decisão no tribunal.

Meneou a cabeça e sorriu dizendo para si.

“Bah a intolerância só causa dor.

É impossível travar o curso normal da vida que cresce com a diversidade, mas aqui sabia-o bem estava ser o Pensador.

“Ide em Paz e o que Senhor vos acompanhe”

Amen

Bibliografia de apoio

O Massacre do Judeus – Edições Aletheia

Igreja de São Domingos
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