Com as mãos em forma de concha para proteger os olhos do sol abrasador, o árabe perscruta o horizonte junto ao pano da muralha. Lá em baixo o rio de um azul profundo permanece calmo e as ruas apinhadas de gente ecoam as gargalhadas, os gritos e a barafunda, denunciando mais um dia sem sobressaltos.
Perspicaz sente a capa flutuante do mensageiro que a correr lhe entrega uma missiva onde se garante estarem os cristãos longe dos terrenos de contenda.
Cansado, o palafreneiro não tem tempo nem para se encostar pois seu amo e rei D.Manuel I decidiu abandonar o castelo para se instalar lá em baixo no novo Terreiro chamado do Paço. Não há que espantar é lá que o mundo gira a grande velocidade, é lá que as naus são preparadas para a partida e é lá que chegam as singularidades de um mundo ainda por descobrir. Lisboa é agora uma Cidade Global onde aportam animais exóticos, plantas diferentes e humanos de tez escura.
Nas ruas sempre apinhadas as cores dominantes são o castanho torrado e os cantares tem um sabor tropical.
A guitarra tange ao ritmo do samba e anuncia a chegada dos rapazes e das raparigas que de branco e amarelo sobem pelo empedrado gasto pelo tempo, e pela erosão de tantas passagens. O chicote estala no ar e fere o chão que se esboroa e sobe em fumos enovelados de pó. O grupo salta e foge. Mas a dança impõe o seu feitiço e mesmo sem se dar conta as ancas meneiam e os corpos rodopiam no ar levantando sacos de serapilheira cheios de café, ou será de açúcar? Pouco importa ambos os produtos são preciosos.
O público é chamado a intervir, difícil mesmo é resistir ao frémito que a música assim agitada provoca no intimo de cada um.
Mas a animação tem o seu fim, e a pauta sem notas obriga os artistas a lançar os últimos acordes sempre em tonalidade maior. O grupo dispersa e desce pelo mesmo empedrado tendo como moldura Almada bem na outra margem.
O árabe, na praça de armas vai até ao limite que o chão lhe permite, saboreia a paleta dourada, ultimo aceno de um dia que em breve será vencido pela noite, ao longe ouve a chamada para a oração.  Ao seu lado uma família observa os mesmos tons, sente a mesma paz e ouve ao longe a saudação de um navio de cruzeiro que parte em direção a foz do Tejo, de uma azul intenso pontuado a branco pois muitas são as embarcações que nele navegam a esta hora de calmia.
Relendo tudo outra vez, que tremenda confusão, não admira falta-lhe a quarta dimensão; o tempo, esse vector que tem a sublime mestria de organizar o eixo cronológico para uma humana perceção.

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